Conheço várias pessoas que adorariam estar no meu lugar. Fãs que te acompanham há anos e gostavam de te conhecer. Como lidas com isso?
Naturalmente. Às vezes tenho mais pachorra que outras, mas as pessoas normalmente não me aborrecem, não me chateiam muito. Pedem-me para tirar fotografias e eu tiro, tem de ser. Ainda ontem me pediram um autógrafo para um puto que já tinha morrido.
Como?
A mãe dele pediu-me, porque ele gostava muito da minha música.
E custou-te?
Essa foi muito off, mesmo. Nunca me tinha acontecido. Normalmente são os próprios putos que pedem um autógrafo e não me custa nada dar. Pergunto: como é que te chamas? Bruno? Micaela? Está a andar!
Eu estava a falar de outros, que sabem de cor as tuas letras, que vão aos teus concertos e ouvem as tuas músicas e sentem que mexes com eles. Não era apenas dos que te reconhecem na rua.
Esses são os mais chatos porque levam os discos todos para eu assinar [risos]. E um gajo não pode escapar.
São pessoas que te param na rua e querem mesmo falar contigo. Já vi isso no Príncipe Real, em Lisboa. O que fazes?
Olha que é raro. Estive agora em Cabanas uns dias e as pessoas dão-me um aperto de mão ou um beijo. Mais nada.
Já estão mais habituadas à popularidade dos artistas?
Vou ao Chiado, vou a Cabanas, vou ao Minho, vou seja lá onde for e não me chateiam. Se me virem com ar de quem não está naquela onda, se me virem muito parado e introspectivo, então não chateiam mesmo nada. Quando muito fazem um sorriso e eventualmente (mas isso são mais os putos) pedem-me para tirar uma fotografia.
Tens filhos dessas idades?
Tenho dois filhos. Um fez anos esta semana e eu ia-me esquecendo! Esse chama- -se Vicente, tem agora 26 anos e toca piano comigo, na minha banda. Toca muito bem! O outro é o Francisco e ainda só tem 14. Estuda no Colégio Moderno e anda lá a partir janelas, como eu e o irmão andámos. Mas este porta-se um bocadinho melhor que nós. Esteve agora numa colónia penal [risos].
Não esteve nada. Mas chateia-te ter um filho que parte janelas no liceu? Também partias janelas?
Eu saltava-as.
Como é que foram a tua infância e a tua adolescência?
A infância foi calma. A juventude, a partir do Liceu Camões, foi mais caótica. Tentava fugir às aulas, saltava janelas.
Em casa o que diziam disso?
A minha mãe, que era a minha encarregada de educação, dizia que não.
Ralhava-te, castigava-te, tentava contrariar esses ímpetos?
Tentava contrariar, claro, mas nessa idade já era um bocado difícil. Um puto com 11, 12 anos já é difícil de contrariar. Ainda por cima com a história que eu tinha...
Que história é que tinhas?
Já tinha lido muito e tocado muito.
Já fumavas?
A partir dos 12 já fumava. Um dia levei um par de bofetadas de um velho que não conhecia de lado nenhum e me viu fumar na rua. Deu-me um par de bofetadas por eu estar ali a fumar ao pé do Camões.
E tu, que fizeste?
Eu? Levei o par de bofetadas e fui fumar para um vão de escada. Até hoje...
Não devias ter mais cuidados com a tua voz? Ou ela é feita dos cigarros que fumas e do álcool que bebes?
Nunca me preocupei muito com a voz, sabes?! Houve uma altura, precisamente na minha juventude, entre os 10 e os 15, em que queria cantar. Aliás, ainda na infância já queria atingir o nível do "Don Giovanni" [canta em alto, demasiado alto] e cantava na escada, mas o meu pai dizia: "Tu não tens voz nenhuma, pá!" Depois tentei atingir o nível do Elton John e do José Cid, com aqueles agudos, mas também não consegui [risos]. Mas tentei, tentei ser cantor.
E não conseguiste.
Não.
Não tendo conseguido, fazes muito sucesso...
Faço porque adequo as coisas à minha maneira de cantar.
Escreves sempre as tuas letras?
Quase sempre.
Quando não és tu, quem é?
Houve uma altura em que foi o Ary dos Santos. Um mestre. Depois foram os que não sabiam que estavam a ser os meus mestres mas eram: o Zé Mário Branco e o Sérgio Godinho, que vão dar agora um concerto com o Fausto.
Com que idade os conheceste?
O Fausto conheci-o... sei lá, no Parque Mayer, naquelas noites boémias do Bairro Alto e por aí. O Sérgio e o Zé Mário não estavam cá sequer, ainda. Só os conheci depois do 25 de Abril.
Onde é que estavas no 25 de Abril?
[risos] Isso faz-me lembrar o Baptista [Bastos]. Estava na Dinamarca, em Copenhaga. Estava com asilo político, classe B, que eram os "refraccionários", não eram os políticos como o Álvaro Cunhal ou o Mário Soares. Eu era um daqueles milhares de putos refractários.
Que fazias em Copenhaga?
Como não aprendi dinamarquês, acabei por ter de trabalhar. O governo deu-me um limite de seis meses para aprender, mas a minha professora era casada com um músico de jazz, a gente passava a noite a tocar e eu não ia às aulas. Portanto ao fim de seis meses não falava dinamarquês (só sabia algumas palavras) e tive de ir trabalhar. Em vez de ir às aulas às oito da manhã, passava as noites em casa deles.
Casaste na Dinamarca com uma portuguesa...
Casei, para ela poder ficar lá. Éramos namorados na altura, eu tinha 23/24 anos. Já tinha passado pela Faculdade de Ciências de Lisboa, por Engenharia, já tinha feito estudos musicais, etc., mas isso não interessou para nada quando o governo dinamarquês fez a minha avaliação. Como chumbei, fui fazer limpeza de quartos no Hotel Sheraton de Copenhaga.
Deixa-me tentar arrumar um bocado esta conversa meio anárquica: aos 23 anos casaste pela primeira vez, estavas na Dinamarca e foste obrigado a trabalhar. Em Lisboa já tinhas passado pelo Conservatório e pela Faculdade de Engenharia, certo? Quando ias ser chamado para a tropa piraste-te para Copenhaga.
Exacto. Estive lá um ano, a namorada com quem casei foi de cá comigo e não tivemos filhos. Mas escrevi-lhe canções [canta alto: "Porque queres deformar o chão que ainda não pisaste?"].
As mulheres com quem estás nunca têm ciúmes das letras que escreveste para as mulheres com quem estiveste?
Acho que não. Também não faz sentido. Há canções que escrevi quando vivi com uma mulher mas, se neste momento vivo com outra, elas são absorvidas naturalmente e quando as canto são para o público.
Já não têm o sentido da paixão...
Não. Por exemplo, a Rita, a miúda com quem vivo há 13 anos e com quem estou casado desde o ano passado (casámos em Las Vegas), sabe que eu canto canções que foram escritas há muito, muito tempo, quando ela ainda não era nascida [risos].
Quantos anos tem a Rita?
Tem menos 21 que eu, faz as contas.
Como é que se apaixonaram?
Fomo-nos apaixonando por aí. Ela é actriz, foi muito Bairro Alto...
Quem é que se apaixonou primeiro?
Ah! Isso é uma pergunta tramada. Foi químico, mútuo, natural. Fomo-nos encontrando e cada vez que nos víamos era uma chispa e portanto a coisa foi avançando. Eu ainda estava casado. Aliás, eu era bígamo, porque o meu casamento na Dinamarca nunca foi dissolvido. Essa namorada na altura voltou comigo para Portugal e fomo-nos separando ao longo do tempo.
Como é que foram os teus tempos pós-Dinamarca?
Foi mais Paris. Fazia música de rua, com a viola e o chapéu cheio de haxixe [risos].
E moedas. Ou não?
Poucas. Era mais haxixe e vinho.
E vivias assim?
Basicamente sim. É uma vida muito boémia mas possível. Numa passagem de ano em que ia tocar a Paris, precisamente, conheço uns gajos que me dizem: "Eh pá, queres vir por aí fazer uns francos?" E eu: "Embora! Onde é o ponto de encontro?"
Nem perguntaste o que iam fazer?
Não. Marimbei no bilhete de avião de regresso e percebi que cantando bem durante meia hora fazia bastante dinheiro, na altura.
O que era cantar bem e fazer bastante dinheiro nessas circunstâncias?
Muito dinheiro dava para pagar um jantar de ostras, com vinho Châteauneuf-du-Pape, e ir ver os Irmãos Marx ao cinema, ou o Frank Zappa ao vivo (e também estou a falar do Zappa porque é um gajo que está muito, muito esquecido). Na altura também gostava de Weather Report.
O facto de consumires álcool faz com que vivas permanentemente em "estado líquido", com o que isso tem de criativo para o teu estilo de criatividade?
Nem sequer é isso. Até já houve alturas em que não precisei. O álbum "Norte", em que eu estava seco, é seco, um bocado cinzento na construção de tudo, das letras, da música, não sei, é tudo muito cerebral. O último é muito mais maluco.
É muito mais como tu?
[risos] Obrigado. Obrigadíssimo.
Tu é que te classificas...
A dependência é uma besta que dá cabo do desejo, já escrevi isso. E a liberdade é uma maluca que sabe quanto vale amar... É assim: eu já tive N vezes sem beber, em estado sólido (é como tu lhe chamas?). Mas em relação ao tabaco o máximo que consegui foram 15 dias.
Ficaste em carência?
Isto é como o Picasso: primeiro vem o período rosa, depois o azul e só depois a fase negra. O período rosa é porreiro, olhas para os outros e estão a fumar e a beber e não sei quê e não faz mal. No período azul já começas a sentir privação. No black, black, aí precisas mesmo de ajuda.
Tens medo da dependência? Dizes que é uma besta e cantas isso. Assusta-te?
Não tenho sustos e até tenho sonos porreiros, mas há momentos de angústia em que uma pessoa pensa assim: eh pá, eu há dez anos era imortal e agora já não sou.
Tens uma mulher com menos 21 anos. Isso traz-te uma consciência mais aguda dos teus limites?
Não é só a Rita, também são os meus filhos e sou eu! Não me apetece nada a ideia de ir embora. Nada! Quando uma pessoa tem um problema qualquer começa a pensar: eh pá, qualquer dia eu vou-me embora! E é uma chatice, não apetece nada.
Em relação a isso não podes fazer nada, mas podes ter mais cuidados para melhorar a qualidade de vida antes de te ires embora...
Posso deixar de fumar, mas neste momento tenho não sei quantos médicos que me dizem: eu não lhe devia dizer isto mas está muito melhor do que há dois anos!
Resta saber como estavas há dois anos...
[Risos] Eu tenho uma hepatite C, nota. Não é brinquedo. Os bichos ficam adormecidos mas quando estão activos sinto um cansaço enorme. Já fiz tratamentos muito violentos de seis meses e mais, em que estive a trabalhar e ia para o palco e tinha que ir em seco, claro. Tentar fazer o tratamento a beber não dá.
Há pouco falaste de Zappa e Weather Report. Que outros músicos te marcaram e inspiram?
Beatles, Stones, Animals e por aí fora. Os gajos todos dos blues brancos, a escola do John Miles e do Eric Clapton. E dos pretos também, do Mississípi. Todos esses gajos me inspiram, sobretudo os Stones.
Tocas todos os dias?
Estás-me a despachar?
Não, nada. Mas estamos a ter uma conversa muito anárquica e muito impressionista...
Estamos a falar de música, não estamos?! É que, para mim, ainda há os franceses como o Brel, o Léo Ferré, o Brassens um bocadinho menos...
E o Gainsbourg?
Dizem que eu sou parecido com o gajo e eu nunca gostei disso porque vi o Gainsbourg em Paris e não gostei nada porque se levantou e disse: "Je montre mon cul." Estava o Chick Corea e estavam outros e não gostei da atitude do gajo.
Mostrar o rabo à plateia é uma falta de respeito e de gratidão com o público.
É. Mas eu já fiz algumas coisas do género, como mandar as pessoas para o c....
Ficaram ou foram-se embora?
Houve concertos em que ficaram.
O que é que te faz mandar as pessoas para aqui ou para ali num concerto em que pagaram para te ouvir?
Normalmente a falta de atenção. Primeiro digo: "Eh pá, eu estou a cantar para vocês!"
Como é que as pessoas reagem quando as interpelas dessa maneira?
No Mosaico, um bar ali na Graça, ficavam tão caladas que eu às tantas pensava: "Eh pá, o que é que eu fui dizer? Por favor, continuem a falar, bebam, conversem!"
Mandas calar e depois arrependes-te?
Porque fica um silêncio de morte. Isto é um país pequeno e a gente esgota-se um bocado, apesar de haver muita festa de aldeia e assim. Estamos sempre a 20 ou 30 quilómetros do sítio onde tocámos no ano anterior. Cada vez há mais rotundas, já conheço todas as rotundas de Portugal. Nas festas há mais acordeão ou menos acordeão e um gajo tem de estar sempre bem-disposto, mesmo se estiver cansado. E é aí que facilmente mando as pessoas para o c...
Depois pedes desculpa?
Não, não peço desculpa coisa nenhuma. Só peço desculpa quando é caso disso. Em cenas domésticas, quando falho peço desculpa.
Mesmo que te excedas?
Posso exceder-me no vernáculo mas na atitude não. Nem sequer mostro o cu.
O contexto português é mais susceptível, ou não?
Não. Eu é que não mostro o meu cu. Prefiro mandar as pessoas para aquele sítio.
Cultivas uma aura de boémio anarca que permite que te dês a esses luxos?
O vernáculo faz parte, não achas?! Quem é o pintor que não fez desenhos pornográficos?
Por isso mesmo, insisto, é uma imagem que cultivas. Não és um menino de coro, ponto.
Não, isso não sou. A minha imagem, ou seja, a minha maneira de estar é espontânea. É aquilo que me vem ao raio da cabeça na altura, e por isso é que não há dois concertos iguais. Por isso é que a banda fica à rasca, porque eu de repente faço um insert e eles olham uns para os outros, olham para mim, e pensam: "Que é que vai sair daqui?" [ri-se e canta The Doors numa versão reinventada]
Que pratos gostas de comer?
Ostras e petiscos. Também gosto de um bom lavagante...
Tens gostos caros. Vives do que ganhas?
Vivo e tenho vida para isso.
É um luxo, nos dias que correm. Preocupa-te um dia poderes não viver do teu trabalho?
Preocupa-me adoecer, e essa ideia chateia-me.
Já ficaste sem voz?
Já, e até em concertos importantes, por causa dos nervos.
O que é que fizeste?
Fiz como dizia o Leonard Cohen: "Se o Dylan canta, eu também posso cantar!" [risos] Ou posso falar, como o Cohen.
Se fosses outro ias aos teus concertos?
Ai eu ia! São sempre diferentes, nunca se sabe o que é que vai acontecer [risos]. O gajo pode estar sem voz, nunca se sabe se vai falar muito ou pouco...
sexta-feira, 28 de agosto de 2009
Jorge Palma: "Tentei ser cantor, mas não consegui"
Jorge Palma, músico, tem 59 anos, voz de 30 e atitude de 14. Apaixonado pela vida, diz que gostava de chegar aos 80 e fazer como Léo Ferré, que nessa idade cantava e recitava Baudelaire, Appolinaire e Rimbaud. O pai era cantor amador e a mãe puxava-o para o piano clássico. Diz que tem uma vida de privilégio. Adora fumar e beber, mas acorda cansado. Conversa profunda e anárquica, como ele.
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2 comentários:
grande Jorge Palma. Quer como compositor quer na atitude. Adorei a entrevista...
para seres como gainsbourg tens de comer muita sopa
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