Deixem-me contar-vos uma história. É a história de um senhor que precisava de um par de sapatos.
O Sr. Vieira era um homem grisalho, na casa dos seus 50. Tinha um trabalho importante numa empresa multi-nacional, comandava muita gente fazendo uso do seu jogo de cintura e da demagogia, que os pobres subordinados engoliam encolhendo os ombros.
Pela sua posição profissional e social, tinha absoluta necessidade de não cometer erros quanto à sua indumentária. É um mundo de dog-eat-dog, e facilitar era morrer.
A certa altura, o Sr. Vieira (chamemos-lhe aleatoriamente assim) tinha uma reunião importante que lhe podia garantir uma promoção que procura há dois anos, sem sucesso. Precisava de uns sapatos, porque os dele não serviam e precisava mesmo de usar uns bons sapatos.
A caminho da baixa, onde estava o comércio onde habitualmente comprava, lá ia o Sr. Vieira a pensar no tipo de sapatos a comprar. "Bem, no ano passado usei aqueles sapatos conservadores, não fiz grande figura. Óptimo era arranjar uns sapatos daqueles modernos, polivalentes, como os que tive há dois anos. Esses sim, grandes sapatos. Vai ter que ser isso, não estou a ver é onde vou arranjá-los", pensava com os seus botões.
Nisto passa em frente a uma lojinha pequena, de esquina e chama-lhe a atenção a montra. Vê um belo casaco - "que encanto!", diz para si. "Mas já tenho 6 casacos... Bem, os bons casacos nunca são demais, o inverno é longo e decerto haverão oportunidades para usar todos. Além disso o Alexandre disse que estava interessado naquele meu casaco, às tantas ainda lho vendo... Mais vale levar já este para prevenir, de qualquer forma". E pronto, lá trouxe o casaco. Dos 200 euros que levou, já só restavam 120. Mas tudo se haveria de compor, tinha que bater certo...!
Duas ruas abaixo, o Sr. Vieira passa em frente a um novo espaço, sobre o qual tinha ouvido na rádio, um género de outlet que exibe um cartaz - "aceitamos a sua roupa usada". "Ora se não é mesmo isto que me dava jeito... Tenho de facto umas camisolas que não vou usar, e sempre aproveito para arranjar algum espaço no armário". Pagavam mal, mas bem, sempre são uns trocos. E elas lá estavam paradas de qualquer forma, portanto não está mal. E bem, foi assim que nessa tarde o Sr. Vieira se viu livre das camisolas a mais, ficando agora com as 4 camisolas de que precisa para passar o Inverno. "Perfeito", pensou para com os seus botões.
Continuando a sua rota, o Sr. Vieira passa pela loja do seu amigo Torres. Torres era um velho parceiro de negócios de Vieira, que estava agora à frente desta loja, muito antiga e com muitos recursos. Lá decide entrar para cumprimentar.
- Olha quem ele é, então como estás amigo Vieira?
- Nada mal Torres, nada mal. Acabei de comprar agora este casaco...
- Epá, não está feio, não senhor. Mas sabes que esse padrão é um pouco avant-garde, não se vai usar já, já. Podias ter falado, eu arranjava-te aquele casaco que te emprestei há dois anos, não o uso e fazia-te um preço porreiro nisso.
- Epá, realmente. Nem me lembrei disso, pôrra. Mas é de facto um casaco e pêras. Estás a pedir quanto por ele, mesmo?
- Por ser para ti, 120. Sabes bem que entre nós o preço é sempre jeitoso para o teu lado...
O Sr. Vieira engoliu em seco. De facto adorava aquele casaco, que usara durante um Inverno há dois anos e que tão bem lhe ficava. Mas 120 é precisamente o dinheiro que tinha para os sapatos. Merda!
- Não fazes um descontinho nisso, sequer?
- Vieira, sabes que não posso. 120 é bom preço.
- Que se foda, venha daí o casaco. Aqui tens os 120 euros.
- Bom negócio, Vieira, bom negócio. É sempre um prazer, aqui tens.
Descendo a rua, o Sr. Vieira ia tão contente com os seus dois casacos novos como apreensivo quanto ao facto de não ter os sapatos que precisava. Merda, agora estava mais que bem servido de casacos mas ainda sem sapatos, e amanhã já tem que ir trabalhar. "Bem, só se passar em casa do Torres mais logo, a ver se ele me empresta aqueles sapatos que ele lá tem encostados, não são maus e vão dar para me desenrascar". E assim fez, voltou para casa e logo à noite passaria sem falta em casa do Torres.
- Triiing!! (campaínha)
- Olha o Vieira, então rapaz, como estás?
- Torres, preciso de um favor teu. Epá, sabes que hoje te comprei aquele casaco, e daí nada a dizer. Mas agora fiquei com um problema, precisava que me emprestasses aqueles sapatos que aí tens e não usas, ia-me desenrascar para a reunião deste ano e logo se via.
- Epá, oh Vieira... Sabes que não é má vontade, mas só te empresto os sapatos se me emprestares o teu casaco, aquele que usas sempre que faz chuva.
- Oh Torres, mas preciso dele... Não dá mesmo.
- Então esquece.
- Ok, tu é que sabes. Até logo.
Voltando para casa, a cabeça do Sr. Vieira dava voltas e mais voltas. Onde raio ia agora desenrascar os sapatos a esta hora da noite, e amanhã já tinha que ir trabalhar. "Estou fodido", pensa.
Nisto toca o telemóvel. "O 'Árabe'? As estas horas? Que raio quer ele?" - 'O Árabe' era o ricaço da zona, quando queria alguma coisa nada o detinha até conseguir. "Não pode vir boa coisa", pensou o nosso amigo Sr. Vieira.
- ...Tou?
- Vieira? Era mesmo contigo, companheiro. Preciso que me vendas as tuas calças, hoje mesmo.
- Nem pensar, pá. Só tenho mesmo aquelas, ia ter que passar o inverno todo a remediar-me com calções e etc?
- Dou-te 200 euros.
- Epá... Ao menos os 300.
- 200. E depois dou-te mais 30 euros se ela se mostrarem jeitosas.
- Ok, negócio fechado.
Vieira pensou que aqueles 200 euros lhe dariam um jeitaço, afinal tinha acabado de gastar os seus 200 euros em casacos de que afinal nem precisava tanto e continuava sem sapatos.
"Bem, vou só vestir-me muito rápido e vou ao shopping ali na baixa que ainda está aberto até à meia-noite", apressou-se a concluir. Eram 11 da noite e o Sr. Vieira tinha que a reunião já amanhã. Não tinha calças nem sapatos, não podia ir trabalhar sem eles, era a desgraça. Ao abrir o armário, no entanto, algo lhe salta à vista. Dá-se conta de que uma das camisolas que lhe tinham restado não era bem o que precisava, era amarela e difícil de combinar com outra peça de roupa qualquer. "Agora também não posso ir buscar de volta as outras!" - pensou, inquieto. Precisava de substituir aquela camisola também. E o tempo a passar, que raio!
Chegado ao shopping, Vieira vai direito à loja das camisolas. Repara numa camisola vermelha, que até nem é barata mas é de qualidade aceitável. Bem, pode ser.
- Vou levar esta camisola, por favor.
- São 50 euros, senhor.
- 50 euros? Mas não é da colecção passada? Vai ter que me fazer um desconto...
- Não posso, senhor. Não arranja uma parecida em lado nenhum, muito menos a esta hora.
- Então e se lhe deixar aqui esta, que já não uso?
- Faço-lhe por 45 euros, então.
- 45? Não pode ser, tem que baixar mais!
- Não adianta, senhor. São 23h55 e se quer a camisola tem que se despachar.
- SÃO O QUÊ?!
- 23h55, senhor.
Vieira estremeceu. Não quis saber mais do negócio, deu os 45 euros e a camisola amarela e correu em direcção à loja das calças, já nem queria saber dos sapatos.
Tarde demais. Tinha acabado de fechar, a tal loja. "Estou tão fodido", pensou.
E estava. O Sr. Vieira não podia vacilar, ele que procura ser promovido há dois anos, sem sucesso, em favor do seu arqui-inimigo, um vencedor nato, sempre organizado e imperdulário. O Sr. Pinto era de facto um profissional exemplar, e mais uma vez o Sr. Vieira ia ficar mal na fotografia ao lado dele. Amanhã lá estaria na reunião o Sr. Pinto, bem vestido da cabeça aos pés, preparado e à altura da ocasião. E o Sr. Vieira, bem, o Sr. Vieira estava completamente desgraçado. Ia-se tentar arrumar o melhor que consegue, mas acabou o dia com casacos a mais e bem servido de camisolas - mas sem umas únicas calças e nem um par de sapatos. Terá que usar calções e chinelos, à chuva e ao frio. Havia que encarar, estava completamente na merda. E pensar que tudo o que precisava era de um par de sapatos...
PS: Não há um final feliz. Mas o facto é que a história se baseia em factos reais, também eles de final habitualmente algo infeliz...